Mulheres, relativismo e guerra do Afeganistão
Antigo aforismo de autoria desconhecida dizia que, na guerra, a primeira vítima é a verdade. Pensadores do calibre de Nietzsche, num contundente relativismo (que permite a coexistência de múltiplas verdades), decreta que “não há fatos, apenas interpretações”. Há quem diga que em vez de fatos, o ilustre filósofo alemão queria dizer, de fato, verdades. Humpty Dumpty, personagem de Lewis Carroll (no livro Alice através do espelho), chega ao extremo de dizer que as palavras significam aquilo que ele queira que elas signifiquem. Pode ser assim, ou assado, conforme se lhe dê na telha, numa espécie escolha arbitrária entre múltiplas e possíveis outras significações, tão legítimas umas quanto outras eventualmente selecionadas. Refutando o questionamento de Alice a tal compreensão, Humpty Dumpty justifica-se alegando que até paga salário às palavras utilizadas por ele na elaboração de seu intrigante discurso.
Numa situação de guerra, ou numa visão mais ampla, de conflito geral, instaura-se uma cacofonia deletéria, em vez de uma desejada harmonia entre eventuais conflitantes. O transcurso e aparente finalização, da última guerra do Afeganistão, é uma evidência a ser considerada. Os pensadores e os meios de comunicação de todo o planeta se debruçam em suas estações de trabalho na tentativa de achar uma versão para os graves acontecimentos dos últimos vinte anos (na verdade seriam trinta anos, caso fosse computado o período da ocupação soviética, que durou pouco mais de uma década). Mas essa é apenas mais uma versão cacofônica a turvar o cenário de tantos fatos e tantas verdades coexistentes.
Pontualmente, um consenso se apresenta a quase todos os observadores, a questão das mulheres, em seu papel de vítimas passadas, presentes e futuras, numa ordem que define com rigor o que é ser mulher e aquilo que elas podem, ou não, fazer de suas vidas numa sociedade tribal regida por princípios religiosos. A burka é seu símbolo mais evidente e conspícuo. A violência sobre o corpo das mulheres, no entanto, não é monopólio afegão. Em inúmeras sociedades africanas, a mutilação genital feminina é regra da qual não se escapa. A Anistia Internacional já detectou situações em que migrantes africanos, não podendo mutilar suas crianças e adolescentes em território europeu, simplesmente retornavam a suas tribos de origem alegando visita familiar e, por intermédio da própria mãe, avó, e outras matriarcas tribais, promoviam essa violência às vítimas inocentes. Certo é que se no Afeganistão as mulheres também sofrem a mesma agressão, não se há que justificar a repulsiva brutalidade na África, a pretexto do respeito ao fanado.
Para fugir da necessidade de se condenar a violação de direitos das mulheres, que são universais, movimentos sociais de pautas feministas preferem recolher-se ao silêncio obsequioso de evidente cumplicidade fática com os agressores. Veja-se que no dia seis de fevereiro, dia internacional de combate à prática da mutilação, não se sabe de qualquer adesão nas Casas Legislativas, ou no Judiciário, ou no Executivo, em condenar o nefando costume. Talvez, como desdobramento dos resultados da guerra do Afeganistão, as preocupações ampliadas com o destino das afegãs, possam criar uma cobertura de solidariedade para as mulheres de todos os lugares, seja na Ásia Central, seja na África, seja no Oriente Médio e, até na Europa, para eliminar a abominável prática. O relativismo, como princípio de organização social, não pode afrontar direitos humanos que são absolutos. Caso ele prevaleça, as diferentes sociedades humanas podem vir a testemunhar o surgimento de canibalismo, afronta inaceitável para as civilizações existentes.